“Nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos”, já dizia Benjamin Franklin em 1789. Mas se a máxima frankliana se aplica à grande maioria das pessoas que não tem a opção de não pagar tributo, ela não vale para um tipo específico de contribuinte: o fraudador.
Com a sofisticação de um planejamento tributário engenhoso que só os mais endinheirados podem adquirir, esse contribuinte passa ao largo do seu dever de contribuir para o financiamento dos serviços públicos. E, assim, os recursos que deveriam financiar a atividade estatal em prol dos mais necessitados acaba financiando a atividade econômica do próprio contribuinte, representando uma vantagem competitiva ilegal e danosa à concorrência.
Os danos econômicos e concorrenciais que a fraude fiscal provoca tem motivado a adoção de medidas de exposição dos devedores mundo afora na tentativa de forçá-los ao cumprimento da obrigação tributária pelo seu constrangimento público. A prática do “naming and shaming”[1] de devedores envolve medidas que vão desde a simples divulgação do nome dos devedores para consulta pública até a aplicação de sanções a empresas que adotam estratégias abusivas de redução do pagamento de impostos.
Na Eslovênia, por exemplo, uma lei aprovada em 2012 autorizou a divulgação do nome dos devedores na internet. Nos quatro meses seguintes à publicação da primeira lista, houve uma redução de 8,5% no endividamento das empresas[2]. No Reino Unido, o Tesouro britânico já evoluiu para a exposição não apenas da empresa devedora, como também dos agentes que facilitam a prática da fraude fiscal, sejam eles contadores, consultores ou advogados.
Foi no Reino Unido, aliás, que essa discussão ganhou maior notoriedade. São famosos os casos envolvendo Starbucks, Google e Amazon[3], em que o constrangimento público pela prática de um planejamento agressivo chegou ao seu ápice com a organização de protestos de consumidores contra as empresas.
No caso da Starbucks, os prejuízos para a reputação da corporação foram tão graves que ela se viu compelida a pagar vinte milhões de libras ao fisco britânico[4] e a desfazer a questionada mudança de sede para a Holanda com o objetivo anunciado de “pagar mais tributos” ao governo inglês[5].
No Brasil, onde a percepção da moralidade tributária ainda não é tão clara, coube à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional avançar sobre a exposição pública de devedores. Por meio da Portaria PGFN nº 636/2020, o órgão passou a divulgar na internet e por meio do aplicativo “Dívida Aberta” a lista dos devedores da União Federal com dívidas em situação irregular. Em uma solução inovadora, a PGFN permite que, pelo aplicativo do celular, o consumidor identifique as empresas com débitos nas suas redondezas para estimular o consumo consciente também sob a ótica fiscal.
Não se tem dados sobre o impacto da divulgação dos nomes dos devedores na recuperação dos créditos pela PGFN, o que impede a avaliação de sua efetividade. Mas, independente disso, há pelo menos um ponto em que a exposição pública de devedores da PGFN poderia ser aprimorada: o foco na identificação dos devedores fraudadores e, principalmente, a divulgação da ação do órgão em face deles.
O fraudador é um dos devedores com os quais a PGFN lida. A ação do devedor fraudador prejudica diretamente a justiça do sistema tributário, desequilibrando-o em desfavor do contribuinte mais vulnerável para compensar a perda de arrecadação. Ele adota estratégias jurídicas, econômicas e societárias sofisticadas para se furtar ao cumprimento da obrigação tributária ou, mesmo, para ludibriar o Fisco na cobrança do tributo não pago. E combater essas fraudes é um dos trabalhos mais desafiadores da PGFN, seja para assegurar o recebimento do crédito tributário sonegado e lançado pela Receita Federal, seja para recuperar o patrimônio que foi artificialmente desviado ou escondido para frustrar a cobrança judicial na execução fiscal.
É por isso que o constrangimento público dos devedores fraudadores deveria se tornar mais recorrente. O não pagamento do tributo nesse caso não se dá por dificuldades financeiras, mas por uma opção deliberada de lesar o Fisco. Não é falta de capacidade de pagamento; ao contrário, esses devedores são, justamente, aqueles que enriquecem à custa do sucateamento dos serviços públicos que deixam de ser financiados pelo não cumprimento do seu dever de pagar impostos.
Mas, apesar disso, a exposição pública de devedores que a PGFN desenvolve não traz qualquer informação sobre a prática de fraude fiscal na dívida de alguns deles. E, o que é pior, muito pouco se sabe sobre o trabalho que a instituição vem fazendo para combater as fraudes destes devedores.
Para quem se preocupa com a possível violação da intimidade do devedor, é bom lembrar que §3º do artigo 198 do CTN, expressamente, exclui do alcance do sigilo fiscal as informações relativas a “representações fiscais para fins penais” (inciso I) e “inscrições na dívida ativa da Fazenda Pública” (inciso II). Tanto é assim que, com base na Portaria RFB nº 1750/2018, a Receita Federal passou a divulgar a lista de representações encaminhadas ao Ministério Público Federal em seu site[6].
Ou seja, não haveria qualquer problema em se aprimorar a informação contida na lista de devedores da PGFN para destacar aqueles que possuem representações fiscais para fins penais encaminhadas ao MPF em razão da prática de fraude fiscal. Seria mais uma forma de se fomentar o controle social sobre os agentes econômicos que lesam os cofres públicos e desequilibram o livre mercado.
Por outro lado, uma melhora na comunicação institucional da PGFN quanto ao trabalho de combate a fraudes fiscais também seria bem-vinda. Ao contrário do que acontece, por exemplo, nos acordos de transação, em que há uma transparência ativa com a divulgação no site de todos os negócios firmados, não se vê o mesmo empenho para se noticiar os resultados obtidos com operações de combate à ação do devedor fraudador.
Uma pesquisa na página da PGFN na internet pelas palavras “fraude fiscal” revela a existência de sete operações realizadas desde 2016 até hoje, todas elas em parceria com Receita e/ou Polícia Federal[7]. Em apenas duas dessas notícias houve a divulgação dos nomes dos devedores envolvidos[8].
Se esse resultado não é condizente com os números apresentados ano a ano pelo órgão[9], ele ao menos espelha uma falha de comunicação ou mesmo uma incompreensão sobre a importância de se fomentar o constrangimento público dos devedores fraudadores. Afinal, se o receio da repressão estatal ainda não é suficiente para constrangê-los ao cumprimento espontâneo da obrigação tributária, talvez o medo de sofrer prejuízos econômicos com a perda de reputação perante a sociedade e os consumidores possa vir a fazer esse papel.
É claro que algum cuidado na divulgação de operações realizadas em âmbito judicial será necessário em razão da observância do dever de sigilo sobre algumas informações. Mas, se os dados da inscrição em dívida ativa são públicos, não há problema em divulgar o nome das pessoas responsabilizadas judicialmente pela fraude e de se apresentar o contexto fático da situação, resguardando-se o conteúdo do que for sigiloso. O que não se pode é deixar de divulgar as operações com receio do constrangimento público dos fraudadores, pois, como se viu, essa pode ser uma ferramenta poderosa de persuasão rumo à justiça fiscal.
Em tempos de austeridade fiscal, em que o corte de gastos surge como resposta imediata à falta de recursos públicos, fechar as lacunas do sistema tributário por meio de medidas que permitam incrementar a arrecadação sem criar mais impostos se torna a alternativa mais viável e menos impopular. E, dentre as várias alternativas possíveis, combater as fraudes fiscais com o máximo rigor parece ser a mais justa.
A aposta no constrangimento público de devedores fraudadores pela PGFN pode ser o primeiro passo para termos no Brasil casos como o da Starbucks.
[1] Em tradução literal, “nomeando e envergonhando”.
[2] https://fiwi.uni-hohenheim.de/fileadmin/einrichtungen/fiwi/Mitarbeiter/Discussion_papers_dwenger/Dwenger_Treber__2018__Shaming_for_Tax_Enforcement.pdf
[3] https://www.bbc.com/news/magazine-20560359
[4] https://www.independent.co.uk/news/business/news/starbucks-completes-ps20-million-tax-payment-as-coffee-chain-seeks-to-put-scandal-behind-9896360.html
[5] https://oglobo.globo.com/economia/starbucks-muda-sede-para-londres-apos-criticas-impostos-pagos-no-reino-unido-12214434
[6] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/representacoes-fiscais
[7] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/search?SearchableText=opera%C3%A7%C3%A3o%20fraude
[8] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2018/acao-no-combate-a-fraude-fiscal-estruturada-repercute-na-midia e https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2016/investigacao-da-psfn-em-campinas-desvenda-fraude-de-grupo-que-atua-no-setor-de-combustiveis
[9] Dados do último relatório “PGFN em Números” mostram que, em 2023, foram recuperados mais de 48 bilhões de reais, valor que superou em 23% o recorde anterior obtido em 2022: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros/pgfn-em-numeros